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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

o vô morre
o vô não morre
desde mil
novecentos e noventa
e algo
o vô diz que vai morrer
na hora da morte vêm os médicos
e reavivam
que nem jesus fez uma vez
lázaro na caverna
escura e finda
sem pensar "tudo
acabou" chega
jesus e reaviva
é um desrespeito
com a caverna
com o escuro
com o fim

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Triste

Curvado. Dizia coisas estranhas quando se encontrava com alguém na rua. Dizia por exemplo: nem tudo pode ser arrumado. Os outros olhavam-no e às vezes respondiam: verdade. nem tudo. Ou não diziam coisa alguma e continuavam andando e olhando para trás, receosos ou simplesmente surpresos. Não lhe sabiam o nome. Diziam que certa vez apareceu na cidadezinha. Estava bem vestido. Um maço de papéis na mão. Muitos papéis. Além do "nem tudo pode ser arrumado", falava principalmente da dificuldade de ser compreendido. Os outros: é que você não fala nada além disso... mora longe? está perdido? sofreu algum acidente? Ele repetia: nem tudo pode ser arrumado. E o que havia nos papéis? Olharam. Nada, nada, folhas em branco apenas. O pessoal da vila acostumou-se a ele. Uma viúva velha acomodou-o no quarto dos fundos. O homem dormia entre cadeiras quebradas, espelhos carcomidos, baús descascados. Perguntavam à viúva: ele falou alguma outra coisa, hoje? só aquilo mesmo: "nem tudo pode ser arrumado".

Num dia chuvoso, à tardezinha, o homem gritou: "nem tudo pode ser arrumado, arruma-se o que se pode". A viúva postou-se na varanda da casa e começou a gritar: ele disse outra coisa hoje! ele disse "arruma-se o que se pode"! E todos foram comemorar no bar da esquina. A coisa andava assim quando no dia 21 de abril, logo cedo, o homem gritou: quero fudê! quero fudê! Amarraram-no a um poste e encheram-no de pauladas. Um cachorro passou por perto e ficou olhando o homem morrer. Depois passou um mocinho e disse sorrindo: é, negão, fudê não pode não. Aqueles que ouviram, gargalharam. Alguém se lembrou que o homem não podia ficar morto ali, amarrado ao poste. Um velho chamou o delegado. O delegado chamou o prefeito. O prefeito chamou o padre. O padre chamou os coveiros. Vieram buscá-lo à noite. Chovia agora. Antes de enterrá-lo, os coveiros revistaram seus bolsos. Havia no bolso direito da calça a fotografia baça de um menino segurando um porco. Atrás da fotografia estava escrito: meu primeiro amor. Enterraram-no com fotografia e tudo.

(Hilda Hilst, em Cartas de um sedutor)