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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

a saúde do homem

não temos apenas
maiores salários, projeção social
e o sucesso longevo do sistema patriarcal

para lograr tanto êxito
além de mulheres
temos que nos matar nós mesmos

são os homens que morrem
mais assassinados, e matam, e morrem
mais por suicídio

nas brigas de gangue
e nos filmes de bangue-bangue

em disputas por território
seja um país ou um mictório

dá-lhe bala na cabeça
dá-lhe facada na costela

não temos
apenas maiores salários

http://www.bvsde.paho.org/bvsacd/cd26/a03cv10n1.pdf

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

dentadura perfeita

Tem um dente que
late sozinho quando ninguém
mais vê

faz isso porque um dia disseram "Dente
que late não morde"

amanhã o dente decide contrariar

agora ele está ocupado mastigando

*

meu pai dizia
minha sogra tem
dois dentes:
um pra abrir garrafa de cerveja
o outro pra doer
os amigos riam
a família achava muito engraçado
mas minha vó tinha quatro dentes
na frente e talvez mais um
atrás, sendo que nenhum deles abria
garrafa de cerveja e
quando um deles doeu
minha vó arrancou na unha

*

minha vó dizia
não posso rir porque é feio
velha sem dentes, mas não aguentava
exceto nas fotos
soltava a gargalhada

*

nas fotos sorria de um jeito
talvez ensaiado no espelho
ninguém jamais conseguiria
dizer que ela tinha janela

uma vez eu lhe disse
faça uma pose bonita
e ela, pra pose solene,
fingiu encher uma bexiga

*

meu pai e minha vó morreram
nessa ordem

o aparelho ortodôntico da minha infância
ainda dá certo
assim como o flúor na minha gengiva
que mamãe diz que passava
quando eu ainda não mordia

agora o desafio da idade
é não mastigar os próprios dentes
nem esquecê-los
como se a boca fosse um beco
dentro dos sacos de lixo rasgados
e os ratos tirando sarro

o céu se está preso

pra deixar o dia entrar
abro janelas pelo corpo
os órgãos debruçam-se nelas
porque esperam que passe
o afiador de facas e os leve
em namoro sequestro
à procura da floresta

copas altas que nos cobrem
ameaçava a professora da igreja
não deixam a luz chegar ao chão
da amazônia, caverna aberta
a superfície digere a gente

sem lâmina de estilete meu corpo
fica fechado igual a casa
daquela tia que esconde o medo
na própria saia,
esses cômodos não ventilam

o futuro é frondoso
guardando o céu no escuro
se junta distante a outros futuros

na base do caule
a gente gesta o adubo

terça-feira, 27 de novembro de 2012

que fique sempre frio

na falta
de um dia no polo
venho
por meio desta pedir que fique
sempre frio, o cinza
combina com os olhos
realça a cor das paredes
os ombros se encapotam pra proteger-se
e só
saem à rua em caso de máxima necessidade

sábado, 24 de novembro de 2012

o desejo abre
um voo submerso
em terra e queixa
volta a superfície
anelado, indistinto
o que é o cu, o que a cabeça
antes pequeno e pluma
inquieto nas mãos
agora cava até a raiz
de nenhuma planta
viesse
exposto o osso do mar
aos nós da nossa garganta
sem sono, desânimo, um fim
de semana em são paulo não
salvo pelo brilho guardado atrás das paredes
no dia

a noite
agora come as lâmpadas
fezes luz pra prolongar
estada na vigília
ingrata

a vida
aquática abriria o ar
passagem pra o futuro prometido
quem sabe qual deserto vagaria
se nós fôssemos

. o fêmur duro do mundo
cravado na cabeça do futuro
supostamente o fim de novembro
devia trazer uma espécie de descanso
classificada pelos estudantes do tempo
como o fecho de fim de ano

temo
um réveillon afogado
desconfiando do conhecimento
que distribuiu os calendários

impressos em cartõezinhos
que a gente pegava na padaria
ou sob o coração de cristo
coroado de espinhos na parede da minha avó
precedido das rosas expostas
no coração de maria

se alguém souber
de um calendário mais exato
ou quiser me dar um relógio
desses que funcionam no natal
aceito, desconfiado
esperando que os ponteiros
apontem uma direção

parece tão fácil para os morangos
e outras plantas sazonais
a hora de recolher-se em secura
e a outra, de dar doce aos animais

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

que dia longo

disse a noite

que escondida esperava

olho os próprios ossos

imagino-os sob a pele

a caverna do corpo

onde a noite dorme

o solo

mal suporta, treme

quando passa

toneladas dinossauro

tem um tumor na cauda

este, por acaso, não deixa fóssil

a noite fecha

o notebook

em que via documentários dinossauros

não entra em cena

"que dia longo", ela repete

daqui a umas horas

(esqueça os ossos)

céu escuro

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teus olhos
esgotam

O ouvido persegue

Querido. *****. Espero. Que. Você. A mensagem segue. Cravei no escuro essa espera, palavras metálicas dizendo, pra todos os meus segredos, é hora do remédio.

À merda.

Ele agacha à cata, das pílulas, sei que eu devia, ser mais paciente. A vida a vida avida ainda está aqui. Nesta sala, nestes olhos. Você não colabora. Pensei que ia ter uma vida inteira pra não colaborar. Desculpe a pressa. Ele chora no banheiro. Pensa que eu não vejo. A cabeça. A minha escuta até o mínimo: passo, suspiro, é a morte, "ela deixa a gente atento, verdade, tudo o que dizem os livros!". Vi-me. Afastada. Do centro. Outra.

"Sempre uma coisa defronte da outra.
Sempre uma coisa tão inútil como a outra."

Eu deveria dar graças por ter o sustento. Ouço e um naco de sangue amortece a garganta. Por tudo dai graças. É minha mãe, não me atrevo a cuspir. Amargo de novo a casa vazia. e a espera.

Tudo não passa de uma grande armação. Nosso herói está saudável neste momento cruzando uma grande avenida, entra na loja e compra cuecas, sai de sacolas, passo leve na rua. Olha o mendigo! Nossa, são tantos. Quando chegar em casa, vestirei as cuecas uma a uma, olho no espelho, a melhor te reservo: você tira nos dentes, gozamos. Um índio amazônico sonhará com esse estranho mundo em que nos cobrimos de panos pra logo tirá-los. Em 1973 será visitado por homens de pano, com gripes e rifles. "Bom dia". Nos levantamos sem doença. Afinal, a vida é mansa: atrito e dureza envolto no sumo, macieza, a penugem cobre a gente. Depois o acaso te toma no colo e.


cheguei às cidades à hora
das bodas quando
ali a alegria imperava
entre os homens

eu dancei com eles

dormi entre os mudos
sem língua a boca cheia
entupida de pontes

a força dos meus braços
foi-se em malas
carreguei o medo

(Max Czollec)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

podia
ser mais fácil
é tão simples
o pênis
procura a carícia
nem força
ninguém a querê-lo
e um dia
contra todas as expectativas
encontra

logo
o pênis
não importa
o corpo todo
abraça o tempo
as mãos procuram
e tudo encontra
é simples
até mais do que parece

mas
então temos
que criar
e buscar argumentos
isso de ser gay
i am what i am
são tudo argumentos
perceba
que argumento
rima com jumento
o que é um insulto
ao animal

antes
que eu me desse
conta
fiquei adulto
a retórica
ganha experiência
e cansaço
por exemplo
que a infecção crescente
do hiv entre jovens gays
é, entre outras coisas, resultado
da marginalização desse segmento
em outras palavras
quando penso no meu diagnóstico
lembro das vezes em que argumentos
justificam um fim lógico
pra mim

ou
(hoje aconteceu)
já posso
dizer que conheço
pessoas que apanham na rua
de grupos de extermínio
senhoras cristãs
e
pior
que um colega foi morto
anteontem no recife
e que tudo leva a crer
- sinais de tortura
cadáver despido
cédula de identidade rasgada ao meio -
ter sido assassinato
motivado por homofobia

sendo o trigésimo este ano
só no estado pernambucano

ao todo em 2011
no brasil 266
assassinatos por homofobia
estimando 1 morte
a cada 33
horas, em 2011, em 2012
ainda não tem estatísticas

preferia
ficar quieto
na cama
enquanto as amídalas
dele não curam
cortando o gengibre
tomando antibiótico
são os únicos argumentos
que às amídalas importam
se você fala pra elas
de estatísticas, de bíblias, homicídios
as amídalas nem ligam

que
o meu colega assassinado
tivesse a idade que eu ainda tenho
me faz dormir com pesadelos
sem argumento
acordar talvez
com pressão na bexiga
ereção matinal
(ela como as amídalas
não liga pra bíblia,
tem uma vaga memória afetiva,
não lê jornal
e só desaparece
com um bom argumento
pode ser tiro, vírus, desprezo
ou qualquer dessas besteiras
que trazem o teu corpo à noite
à morte, na areia)

domingo, 11 de novembro de 2012

"Levado por minha ávida ambição e desejoso de ver a grande profusão de estranhas formas criadas pelo engenho da natureza, vaguei por algum tempo entre os penhascos umbrosos até me deparar com a entrada de uma grande caverna. Permaneci diante dela por algum tempo, aturdido, perplexo com a existência de algo assim, as costas encurvadas, a mão esquerda descansando em meu joelho, a direita fazendo sombra para os olhos, a todo momento me inclinando para lá e para cá, para tentar discernir alguma coisa em seu interior; mas isso me foi negado pela imensa escuridão que nela habitava; depois de algum tempo, dois sentimentos subitamente brotaram em mim: medo e desejo - medo daquela caverna escura e ameaçadora, e desejo de ver se haveria lá dentro alguma espécie de milagre."

(Leonardo da Vinci)

sábado, 10 de novembro de 2012

uma
caverna
que acolha
as noites

fora
o dia
não
cansa

destrói
a caverna
a prefeitura
ergue prédios

nós
nos amontoamos

cada amigo
é um edifício
que sofre com a falta
de asseio ferrugem tubulação

o mundo
sem gente quebra
as paredes, infiltra
luz e raiz

o prédio
da prefeitura e os do
condomínio, o prédio do hospital
tudo desaba

selvagens
os ursos retornam
e dormem
na caverna do escombro
dos amigos
os dentes resolveram abandonar a boca

porque a boca não podia abandonar os dentes

e algum abandono era fundamental à história

embora língua campainha gengivas tenham ficado

todas formando, com glândulas e lábios,

aquilo que ainda pode ser chamado de boca

ninguém beijava ou escarrava nela mais

nem a Ingratidão, essa pantera,

fora solta do zoológico

e correu pro interior

antes que seus caninos também a abandonassem

outra vez a boca:

queria ir a Roma, mas não foi possível

a Europa, sabe, está numa puta crise

não tão ruim quanto a África

mas definitivamente pior do que uma boca sem dentes

que ainda pode, na alegria brasileira,

cozinhar os legumes da feira, tomar uma sopinha

e sorrir no quarto escuro

*

Meus queridos dentes,

deixo este bilhete

caso vocês voltem

e eu não esteja

me esperem

por favor não fujam

outra vez

estou no rádio

arranjei trabalho

canto cabaré

quero roer osso

não aguento mais chupar

o dedo do pé

na geladeira tem queijo

fiquem à vontade

fiquem

faremos mordidas e beijos

*

Pai!

(o velho não responde)

Pai, acorda!

(acorda assustado)

Quê?! Oi?! Hein?!

(ufa)

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

(ufa)

Tive...

(acordando)

Sonhei que eu não tinha mais dentes.

(não sorri)

Mas você não tem mesmo.

(a pantera volta do interior

toca a campainha)

Espera um pouco.

(vai lá ver)

Ah!

(se eu tivesse dentes)

Ah!

(a pantera entra

e chupa os dois)

*

fixação oral:

também posso dizer

às futuras gerações

do meu medo de perder

olhos, quereres, testículos

cabeça, ombro, joelho, pé

pai, patrão

eu

*

querida boca,

não te queremos mais

infelizmente estamos presos

que nem as árvores

o planeta gira gira roda

e elas lá, nas suas raízes

dá uma vertigem

estar preso

em algo que gira

oi

não gostamos mais

de ficar no escuro

molhados

com essa língua babona

de síndica

mas que se há de fazer?

*

Pai!

Pai!!!

Quê?! Oi?! Hein?!

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

Dim-dom

Perae, tocaram a campainha, vou atender.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

vem em sonho para aqueles
que estão muito acordados
a boca range durante a noite
não por isso os dentistas chamam
de bruxismo, elas saíam de seus corpos
transformadas em gato
iam reunir-se nos sabás
onde beijavam o cu do demônio
"por isso", tocha em punho o inquisidor
argumentava "esse bafo ruim"

durante o dia, estou tão sonâmbulo
quanto possível, mas não por isso
vejo fantasmas. eles se escondem
atrás de espelhos e outros objetos
afiados. quando tenho uma noite ruim
de sono sei que eles andaram me encontrando
sem querer.

meu sorriso dentes tão perfeitos
já foi fotografado por muitos admiradores
aproveitem porque logo os dentes
se desfazem em saliva e assombração
visitas noturnas ao tinhoso, êxtase
de deus tornado homem, mão de algoz
na rua augusta, fim do sonho de adão

sábado, 3 de novembro de 2012

o comprimido ainda samba

a cada dia um avanço
da medicina mais um pouco
agora que eu quero viver
penso "tomara que descubram
cura do câncer da sarna do hiv
varíola verruga febre malsã
gripe tosse dor muscular
tudo amanhã"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

samba de um comprimido só

eis aqui este sambinha
feito de um comprimido só
varíola gases gonorreia vão entrar
mas por ora o comprimido é um só
câncer tosse é consequência do que acabo de prever
bulimia reumatismo lúpus lepra avc

quanta letra existe
por aí
fala tanto e não morre nada
ou quase nada

minha mãe entrava no quarto
e trocava os lençóis
meu pai preocupado
xingava todos nós

minha mãe dava injeção
e mandava suturar
meu pai ia socorrer
e era o primeiro a desmaiar

o dr. yip quem mandou
tomar quinze comprimidos
receita fitoterapia
nada a ver com suicídio

espeta agulhas em lugares
precisos e que doem
diz que as quinze bolinhas
é com sal que a gente engole
meu pai sempre dizia
"você acha ele legal?
quero ver você aguentar
comer com ele um quilo de sal"

tanta ideia fixa por aí
que teme tanto e não enfrenta
só inventa

e voltei pra minha nota como eu volto a escrever
desisti, realizado, cansado de escrever
quem quiser que conte outra, ou que arranje outro pra ler

uma bula, um perigo, uma viagem, um bebê

diário da medicina chinesa

o dr.
yip
viu
a minha língua

que vermelhão!
são problemas do coração

e do fígado e da vesícula
que também têm sentimentos

depois
o dr.
yip
pôs
agulhas no meu travesseiro
deu bolinhas coloridas pra tomar

dia 1, começo o tratamento

até agora nenhuma diferença

educado cristão não topo magia negra

coletiva de imprensa
doutor
yip
hiv
tem
cura?

hiv são tlês letlas
cula quatlo
plóxima pergunta

a plateia
tem medo de agulhas
e de piadas étnicas

o dr.
yip
ri